Diagnóstico é commodity

A chegada da inteligência artificial (IA) no diagnóstico por imagem tem provocado grande debate sobre o futuro do radiologista e da especialidade. Desde as opiniões mais fatalistas que afirmam que a especialidade irá acabar, até as mais otimistas que garantem que haverá uma potencialização do trabalho do radiologista, com grandes perspectivas de melhora, existe um espectro enorme de incertezas entre os extremos. Porém, há um consenso dentro deste largo espectro: a especialidade como a conhecemos hoje e atuação do radiologista mudarão sensivelmente em um futuro próximo.

Nos últimos anos, a radiologia tem caminhado para algo mais parecido com uma economia de escala: muitos exames, produção em série, grandes pilhas de exame para baixar, poucas informações disponíveis dos pacientes, pequeno valor agregado ao laudo. O termo commodity refere-se a produtos que não possuem diferenciação em sua origem, sendo seu preço uniformemente determinado pela oferta e procura. São produtos em estado bruto ou com pequeno grau de diferenciação, de qualidade quase uniforme, produzidos em grande quantidade por diferentes produtores. Laudos apenas descritivos, descontextualizados de outros dados clínicos, encaixam-se facilmente na definição de commodity. Mas o que dizer sobre laudos bem elaborados, que contém informações relevantes e opinião diagnóstica, poderiam também se encaixar nesta definição? Na possibilidade de a IA poder emitir opiniões mais corretas que os radiologistas, um laudo elaborado, com opinião diagnóstica, também poderá ser uma commodity. Neste momento, surge a pergunta: fim da especialidade ou início de um novo caminho?

Muitas são as possíveis aplicações da IA na radiologia como, por exemplo, a inteligência de negócios, útil na otimização de recursos e processos nos serviços de diagnóstico por imagem; o atendimento eletrônico ao consumidor, capaz de triar demandas e agilizar o atendimento; a organização do fluxo de laudos, priorizando na lista de trabalho os exames com alterações potencialmente graves. Existe, entretanto, um questionamento sobre o avanço da IA na radiologia que vem causando preocupação aos especialistas: a IA chegará a ter autonomia suficiente para gerar laudos por conta própria? Ou, ainda, será ela capaz de sugerir diagnósticos com mais precisão do que o médico radiologista? Há publicações que sugerem que sim: Issa Akkus e Bradley Erickson, por exemplo, conseguiram predizer por RM, através da IA, as deleções cromossômicas dos braços 1p/19q em gliomas de baixo grau, com 87,7% de acurácia, algo que só era possível detectar com biópsia tecidual. Esta possibilidade de a IA substituir o radiologista em algumas situações, portanto, tem se mostrado bastante plausível.

Antes de assumirmos a IA como uma ameaça, porém, cabe lembrar que a atuação do radiologista não se restringe apenas à elaboração de laudos de radiografias ou de métodos seccionais, na qual reside a maior preocupação de se perder espaço para a IA. O radiologista pode ter uma atuação bem mais direta e ativa, como na realização de exames contrastados, ultrassonografia ou na radiologia intervencionista, atividades em que a preocupação com a IA ainda é apenas tangencial. Entretanto, em ambas as formas de atuação, o produto final que entregamos ao médico assistente pode ser um conjunto de descrição de achados de imagem ou um laudo elaborado, criterioso, embasado na história clínica do paciente e em exames anteriores. Quanto maior nosso envolvimento com o paciente e com o médico assistente e quanto mais nos posicionarmos como corresponsáveis pela condução do caso, maior valor agregado terá nossa atividade.

O atendimento ideal de um radiologista deveria ser como uma interconsulta de especialidade: após a discutir o caso com o médico assistente, o radiologista define qual exame será feito e, de forma personalizada, realiza o exame da melhor forma possível, afim de sanar todas as dúvidas clínicas. Se necessário, pode colher mais informações do paciente e, por fim, deve relacionar todos os dados clínicos e laboratoriais de forma integrada, emitindo seu parecer de forma a incluir na discussão novamente o médico assistente, auxiliando-o na decisão da conduta. Portanto, em um cenário em que a IA seja capaz de fornecer diagnósticos em quase todos os exames, isto ainda seria apenas uma parte de todo o atendimento possível. Qual o melhor exame a ser feito em cada caso? Quando realizá-lo? Quando repeti-lo? Quais dos diagnósticos presentes no laudo merecem atenção especial e exigem uma conduta imediata? A preocupação em relação à radiação ionizante é pertinente em um determinado contexto clínico específico? Estas são algumas das diversas dúvidas que surgem rotineiramente em reuniões clínico-radiológicas, sendo inerentes à prática da nossa profissão, para as quais deveríamos dar suporte e ter uma participação ativa.

Dessa forma, aquele modelo de laudo descritivo, sem opinião, feito aos montes, em breve estará ultrapassado. Mais do que isso, com a IA podemos esperar que a opinião diagnóstica seja a nova commodity. O radiologista deverá investir seu tempo naquilo que é realmente o cerne da radiologia: comunicação e integração das informações, melhorando significativamente a qualidade global do atendimento. O contato humano, o atendimento de qualidade em todas as etapas, a comunicação efetiva entre os colegas médicos e a tomada de decisão baseada em informação de qualidade por uma equipe de saúde são processos e características essencialmente humanas, para os quais poderemos migrar cada vez mais no futuro, em busca de maior qualidade e valor agregado em tudo o que fazemos.

Gostaria de emitir sua opinião? Acredita que tem vários argumentos além destes que deveriam ser considerados? Sentiu falta de algo? Então, este é justamente o sentimento que o médico assistente tem quando recebe um laudo, por mais elaborado que seja, por mais opiniões que contenha. Nada substitui a interação humana.

 

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